Pensar Virgílio
Há tanta ideia por pensar – parte seis
Uma pequena homenagem a Virgílio Ferreira
Este tempo é diferente.
A religião é o capital e o seu deus é um mercado, quando pelo menos devia ser um mercador. As coisas foram fluindo até se transformarem numa folha muito fina. As folhas antigas, os papiros e seus semelhantes, permitiam escrever e rasurar, escrever por cima. Ainda encontramos magníficos palimpsestos onde aquilo que se raspou e escreveu por cima é apenas uma máscara do que, raspado, se escreveu por baixo. Damos com textos inteiros assim tímidos, a coberto das manchas e das rasuras, com as palavras esfaqueadas como entranhas.
Esses textos lembram as grandes batalhas, os grandes genocídios, as mortes sob e sobre os escombros do enorme terramoto.
Deixem-me contar uma história verdadeira, que testemunhei.
Há anos, uma delegação de um país foi recebida por anfitriões deferentes num país que nunca cicatrizara as suas mais profundas memórias feridas. Nessa delegação havia uma jovem cantora, daquelas que recusa aulas de canto por se sentir peça acabada sem ir ao forno certo.
Recorde-se tudo, porque traduz a incapacidade de pensar.
Os anfitriões levaram a delegação a um dos seus campos mais sagrados, uma colina que descia para um vale, enorme. Em várias alturas da História daquele país, aquele vale ficara coberto por cadáveres. Em guerras locais, invasões, guerras mundiais e civis, guerras de todos os tipos, sempre mortais, indecorosas.
Acreditava-se que toda a espiritualidade de um povo estava ali, naquele lugar de morte e ressurreição. Todos os vivos, naturais daquele país. perderam naquele vale um ou mais parentes.
A jovem estrangeira, alheada do que se contava, correu, a rir em gargalhadas inesperadas, pelo vale – e atirando-se pela colina, começou às cambalhotas, rebolando até ser detida por uma autoridade local.
Há várias formas de religiosidade. Uma delas é levar os outros povos a conhecer os locais onde os nossos antepassados estão, mesmo sem estar. Podemos escrever, rasurar, tornar a escrever sobre a mesma folha de papel, o mesmo vale, que permite à erva que cresça e à flor que dê cor ao mundo.
Toda a gente do planeta devia, pelo menos uma vez na vida, ir à Polónia, procurar a rede dos campos de concentração no sul do país, e chorar em Auschwitz.
Toda a gente devia pedir perdão pelo Camboja, pelo Bangladesh, pela Turquia, pelo Ruanda, pelo Congo Belga, por Timor, pelo Chade, por Angola, Moçambique, pelo Tarrafal, pela ditadura que nos matou e humilhou – por cada um de nós e pelos que, entre nós, não pensam.
Alexandre Honrado
Historiador
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